Discurso do Papa aos promotores do diálogo inter-religioso
“Vemos a possibilidade de uma unidade que não depende da uniformidade”
Discurso que Bento XVI pronunciou hoje no Centro Notre Dame em Jerusalém, em um encontro com organizações envolvidas no diálogo inter-religioso.
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Queridos irmãos bispos,
Distintos líderes religiosos,
Queridos amigos,
É uma ocasião de grande alegria para mim encontrá-los nesta tarde. Quero agradecer Sua Beatitude Patriarca Fouad Twal por suas cordiais palavras de boas-vindas pronunciadas em nome de todos os presentes. Faço recíprocos os calorosos sentimentos expressados e saúdo com alegria a todos vocês e aos membros dos grupos e organizações que vocês representam.
“O Senhor disse a Abrão: ‘Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar’... Abrão partiu como o Senhor lhe tinha dito... Tomou Sara, sua mulher com ele” (Gen 12, 1-5). O chamado de Deus, que marca o início da história de nossas tradições de fé, foi ouvido no meio da existência diária comum do homem. E a história foi formada, não em isolamento, mas através do encontro com culturas egípcia, hittite, suméria, babilônica, persa e grega.
A fé sempre é vivida em uma cultura. A história da religião mostra que uma comunidade de crentes procede em graus de fidelidade a Deus, configurando-se e formando a cultura que encontra. Esta mesma dinâmica é encontrada nos crentes das grandes tradições monoteístas: em conformidade com a voz de Deus, como Abraão, respondemos a seu chamado e buscamos o cumprimento de suas promessas, movidos a obedecer sua vontade, forjando o caminho em nossa própria cultura particular.
Hoje, cerca de quatro mil anos depois de Abraão, o encontro de religiões com a cultura ocorre não simplesmente no plano geográfico. Certos aspectos de globalização e em particular o mundo da internet criou uma vasta cultura virtual, com valores que variam da mesma forma que suas incontáveis manifestações. Sem dúvidas, muito foi alcançado para criar um senso de proximidade e unidade na família humana por todo o mundo. Mas, ao mesmo tempo, o conjunto ilimitado de portais através dos quais as pessoas prontamente têm acesso a fontes indiferenciadas de informação pode facilmente tornar-se um instrumento de fragmentação crescente: a unidade de conhecimento é estilhaçada e as habilidades complexas de crítica e discernimento aprendidas através de tradições acadêmicas e éticas são muitas vezes atropeladas ou negligenciadas.
A questão que naturalmente se levanta é qual é a contribuição que a religião oferece às culturas do mundo em resposta à rápida globalização. Muitos rapidamente apontam as diferenças aparentes entre as religiões, como crentes ou pessoas religiosas somos apresentados ao desafio de proclamar com clareza o que partilhamos em comum.
O primeiro passo de Abraão na fé, e nossos passos para ou desde uma sinagoga, igreja, mesquita ou templo, pisa o caminho de nossa única história humana, desdobrando o caminho, podemos dizer, para a Jerusalém eterna (cf. Apo 21, 23). Semelhantemente, cada cultura com sua própria capacidade de dar e receber oferece a expressão de uma natureza humana. O individual nunca é completamente expressado através de sua própria cultura, mas transcende na constante busca por algo além. Desta perspectiva, caros amigos, vemos a possibilidade de uma unidade que não é dependente da uniformidade. Enquanto as diferenças que nós exploramos no diálogo inter-religioso podem muitas vezes parecer barreiras, elas não devem obscurecer o senso comum de espanto e respeito pelo universal, pelo absoluto e pela verdade, que impele as pessoas religiosas a conversar umas com as outras em primeiro lugar. De fato é a convicção partilhada de que estas realidades transcendentes têm sua fonte – e contêm os traços – no Todo Poderoso que os crentes têm ante cada um, nossas organizações, nossa sociedade, nosso mundo. Desta forma não apenas enriquecemos a cultura mas a formamos: vidas de fidelidade religiosa ecoam na presença de Deus e então formam uma cultura não definida por limites ou tempo ou lugar, mas fundamentalmente formada por princípios e atitudes que nascem da crença.
A crença religiosa pressupõe a verdade. Aquele que acredita é aquele que busca a verdade e vive por ela. Todavia o meio pelo qual compreendemos a descoberta e a comunicação da verdade difere, em parte, de religião para religião, não podemos ser desencorajados em nossos esforços de testemunhar o poder da verdade. Juntos podemos proclamar que Deus existe e pode ser conhecido, que a terra é sua criação, que somos suas criaturas, e que ele chama cada homem e mulher para um caminho de vida que respeita seu projeto para o mundo. Amigos, se acreditamos que temos um critério de julgamento e discernimento que é divino em origem e pretendido para toda a humanidade, então não podemos nos cansar de levar esse conhecimento para fundamentar a vida cívica. A verdade deve ser oferecida a todos; ela serve para todos os membros da sociedade. Ilumina os fundamentos da moralidade e da ética, e une a razão com a força para alcançar além de suas próprias limitações com o objetivo de dar expressão a nossas mais profundas aspirações. Longe de ser ameaçadora à tolerância de diferenças ou pluralidade cultural, a verdade faz que o consenso seja possível e mantém o debate público racional, honesto e responsável, e abre o caminho para a paz. Encorajando a vontade de ser obedientes à verdade de fato alarga nosso conceito de razão e sua margem de aplicação, e faz possível o diálogo genuíno de culturas e religiões tão urgentemente necessário hoje.
Cada um de nós aqui também sabe que a voz de Deus é ouvida com menos clareza hoje, e a razão tem em muitas instâncias tornado-se surda ao divino. E esse “vazio” não é de silêncio. De fato, é o barulho das necessidades egoístas, promessas vazias e falsas esperanças que frequentemente invadem o espaço no qual Deus nos procura. Podemos criar espaços – oásis de paz e profunda reflexão – onde a voz de Deus pode ser ouvida, onde sua verdade pode ser descoberta na universalidade da razão, onde cada indivíduo, independentemente de nacionalidade, grupo étnico, preferência política, ou crença religiosa, pode ser respeitado como uma pessoa, como um amigo ser humano? Em uma era de acesso instantâneo à informação e tendências sociais que geram um tipo de monocultura, uma profunda reflexão a respeito da ausência de Deus encorajará a razão, estimulará o gênio criativo, facilitará a apreciação crítica das práticas culturais e abraçará o valo universal da crença religiosa.
Amigos, as instituições e grupos que vocês representam englobam o diálogo inter-religioso e a promoção de iniciativas culturais em uma amplo leque de níveis. De instituições acadêmicas – e aqui eu gostaria de fazer uma menção especial às notáveis conquistas da Bethlehem University – aos grupos de pais enlutados, de iniciativas através da música e das artes aos corajosos exemplos de mães e pais, de grupos de diálogo formal a organizações de caridade, vocês diariamente demonstram sua crença de que nosso dever ante Deus é expressado não apenas em nossa adoração, mas também em nosso amor e preocupação com a sociedade, com a cultura, com nosso mundo e com todos que vivem nesta terra. Alguns querem que acreditemos que nossas diferenças são necessariamente causa de divisão a ser tolerada. Uns poucos até mantêm a ideia de que nossas vozes devem simplesmente ser silenciadas. Mas sabemos que nossas diferenças não precisam nunca ser mal representadas como uma inevitável fonte de fricção e tensão nem entre nós mesmos nem na sociedade como um todo. Ao contrário, elas nos dão uma maravilhosa oportunidade para pessoas de diferentes religiões viverem juntas no respeito profundo, estima e apreciação, encorajando um ao outro nos caminhos de Deus. Movidos pelo Todo Poderoso e iluminados por sua verdade, que vocês continuem a dar passos com coragem, respeitando tudo que nos diferencia e promovendo tudo que nos une como criaturas abençoadas com o desejo de trazer esperança a nossas comunidades e ao mundo. Que Deus nos guie ao longo deste caminho!
[Traduzido do original inglês por Élison Santos
© Copyright 2009 - Libreria Editrice Vaticana]
Fonte: JERUSALÉM. 11 de maio de 2009. ZP090511. www.zenit.org